domingo, 18 de setembro de 2011

Quem É Você?

Em Noite dos Mascarados, o pierrô de Chico Buarque pergunta à colombina: “Quem é você?...”. E ela retruca com uma proposta: “Adivinha, se gostas de mim!”. Mas será possível dizer quem se é realmente? Ou será que só cabe aos outros dizerem quem é você?
Conta-se que o filósofo Arthur Schopenhauer respondeu de modo diferente quando perguntado por um policial, que o considerou suspeito, vagando por um jardim: Quem é o senhor? Ao que teria respondido o filósofo alemão: Se você souber me dizer quem eu sou, eu lhe ficarei muito grato! Isto por que, filosoficamente, não basta adivinhar o nome próprio de uma pessoa com o sobrenome da sua família, para dizer quem ela é realmente. Haja vista que ao pronunciar o tal nome é possível e às vezes ainda necessário questionar: “...Sim, mas quem é... Fulano de Tal, no jogo do bicho?”, como diria o meu amigo Bispo.
Pior ainda é quando alguém, presumindo respostas evasivas, não apenas pergunta, mas simplesmente propõe, como se acreditasse que você já sabe quem você é: Como você se define? Dependendo do tom da conversa a pergunta pode soar como um teste sobre a sua capacidade filosófica de se auto-definir, ou até como admiração, pela curiosidade em conferir se o que você pensa de si mesmo corresponderia à noção que a pessoa tem a seu respeito.
Ora, nesses termos, só se tem duas alternativas de resposta plausíveis: ou tentar descrever o que já é supostamente conhecido pela maioria ou tentar dizer o que realmente ninguém conhece, mas que justificaria o tudo que se sabe a seu respeito. Pela primeira opção, nova pergunta surgiria: ...Ora, isto é o óbvio. Mas será que isto é o real? Será que você é realmente assim? Agora, a palavra “realmente” obriga a pensar.
O curioso é que existe um pressuposto para perguntas desse tipo. É a crença de que há um saber sobre as coisas, que é superior àquele de quem diz o que as coisas são. Em outras palavras: dizer o que é uma coisa, por mais verdadeiro que pareça, permite sempre a dúvida se é realmente aquilo que se está dizendo, mesmo que a coisa e o sabedor sejam um só: você. E, por trás dessa dúvida, existe a presunção da possibilidade de que alguém saiba mais. Daí porque até Sócrates, após beber o veneno mortal, ao descrever sua crença na vida pós-morte, complementa: “Se é realmente assim, só Deus sabe!” (Fédon).
Então, “realmente” denota a pressuposição de que o real está por trás das aparências. E, na pergunta, tal palavra convida a pensar sobre a realidade da coisa. Assim, “quem é você, realmente?” convoca a pensar sobre si mesmo para além das aparências, para além do modo como você se apresenta. E tal convocação pressupõe que só você próprio pode saber. É certamente um apelo à sua consciência para conferir se aquilo que você sabe de si mesmo corresponde àquilo que é mostrado na sua maneira de ser. Mas esta expressão – maneira de ser – é simplesmente fantástica, pois pressupõe que o ser é... de várias maneiras, como ensina Aristóteles (Met. 1003).
A rigor, a pergunta “quem é realmente você?” pode induzir a pensar que o seu ser é algo diferente daquilo que aparenta. No entanto, vale observar que não é necessário que o seu ser consista em algo diferente da sua própria aparição. Afinal, se o ser é... de várias maneiras, isto significa que qualquer maneira de ser é já e ainda o mesmo ser, como nos assegurariam Parmênides e Espinosa. Portanto, ter algo mais íntimo, oculto e diferente não é algo mais real do que a própria aparência. Ambos são, simplesmente, o mesmo ser, apesar das diferenças. Pois, a meu ver, é inconcebível se pensar em graus de realidade.
Pensar nesses termos é, paradoxalmente, confundir entre o real e a clareza ou evidência que permite distinguir uma coisa de outra. Mas isto é percepção do ser, é abordagem, depende da capacidade de apreensão, de método; é instrumental, mas não é o real. Tal confusão se deve ao fato de, inadvertidamente, se tomar por critério a força de impressão das imagens em nossa mente, força que depende e apenas indica certa capacidade de perceber.  Aliás, esta é a acusação que Hume faz contra Descartes. Agora, tenta falar isso a alguém numa conversa, cuja pretensão nada tem de filosófica!
Então, como definir quem é você, sem utilizar os elementos perceptíveis da sua própria aparição? Que verdade existiria em tal definição? Como comprová-la? Qual o sentido de uma definição que não pode ser comprovada? E por que ou para que se definir com os mesmos elementos que todos já conhecem? O que isto acrescentaria ao conhecimento sobre a pessoa? Ou ainda, em outras palavras: seria impossível definir a si próprio?
 Ora, definir é determinar universalmente. A definição de algo consiste na explicitação da coisa como pertencente a uma dada classe de coisas [daí o sobrenome]. É, a rigor, uma classificação. Logo, é um paradoxo universalizar um individuo, visto que o universal consiste numa classe de indivíduos. Isto implica num contra-senso definir a si próprio para alguém que já o conhece, pois, ou se insere numa classe, pela qual já é conhecido, e desse modo nada acrescenta ao conhecimento; ou diz algo que nada tem a ver com o que é conhecido, o que seria absurdo, haja vista não se poder provar. 
Como, então, dizer de mim algo diferente daquilo que se apresenta no modo como eu me manifesto, como se esse algo diferente fosse realmente o meu eu, o meu ser, a minha verdadeira realidade, enquanto o modo como eu me manifesto fosse outro eu, um não-ser, menos real que o meu íntimo? Como me definir pelo meu íntimo, supostamente mais real, mas que nunca foi manifestado, se a definição de alguém supõe uma verdade que carece do seu manifestar-se? Certamente, a minha definição se invalidaria no primeiro ato que eu cometesse, cuja possibilidade não estivesse incluída nela. Para evitar isto, seria necessário em tal definição ampliar o número de atos pelos quais o meu íntimo pudesse se manifestar. Mas, considerando a disparidade entre o meu eu aparente e o meu suposto eu, o número de atos que me definissem poderia ir ao infinito, haja vista a ausência de qualquer um deles anular a minha definição. Entretanto, isto também impossibilitaria a definição, visto que me deixaria ainda indeterminado, não identificável, imprevisível.
Então, como me definir? Como me identificar dentre tantos seres humanos? Penso que de duas, uma: ou a resposta se prolongaria pela negativa, dizendo de mim o que não sou... mas saber o que não sou não determina o que sou. Ou responderia que, filosoficamente, eu sou alguém que não acredita que alguém possa se auto-definir. Por isso, humanamente, apenas vivo tentando compreender o que vivo, visando melhorar o viver. Todavia, conferir a verdade disto e suas implicações, em que me difiro dos demais e se isso é bom ou ruim, cabe a quem pensa sobre a convivência comigo.

sábado, 17 de setembro de 2011

o mar e eu: a pele

o mar e eu: a pele: você poderia ser puta, eu te amaria do mesmo jeito. poderia ser presidiária, viciada, fracassada. era só continuar tendo esses peitos. poder... [R. Queiroz]

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

BENDITO SEJA


Vocábulo muito dito, desgastado sentido. Isso bem poderia ser um provérbio a se observar.
Já perceberam como as pessoas comuns, ou cristão vulgar, dão graças a Deus por tudo? E como elas abençoam ou pedem a bênção à autoridade parental ou semelhante?
Antigamente se dizia: "sua bênção, meu pai!" ou "sua bênção, minha mãe! ...meu avô! ...vó! ...tio! ...tia! ...padrinho! ou ...madrinha!". Pelo menos deve ter sido assim que fora ensinado pela doutrina católica, rogando uma graça a quem, porventura, pode interceder divinamente: "sua bênção, padre!". Mas qual a autoridade do intercessor? Quem concede tal autoridade a um padre pedófilo, por exemplo? Ou a uma mãe má ou um mau pai, tio ou avô, estuprador, assassino, bandido? Que poder de acesso ao divino tem alguém desse tipo, mais do que uma criança inocente?
Sabe-se, como diz o grande helenista Professor Henrique Murachco, que a preguiça de falar faz a economia das palavras, mudando-as desde benedicto [latim] para Benedito, bendito, Bento, todas significando a mesma coisa: aquele agraciado pelo bem-dizer [benedictione]; daí benzer, resultando geralmente em "bença, pai; bença, mãe!" até se transfigurar em um sonho de consumo dos mais caros do mercado automobilístico: "benz, pai; benz mãe!" (...Mercedes... em latim significa dar graças; mercê: favorecer, beneficiar). Mas, que sentido ainda é guardado nessa prática senão a força da tradição? Certamente por causa disso ela vai se perdendo. Pois, se não há sentido, por que praticá-la?
Do mesmo modo ocorre com o discurso da autoridade de quem abençoa. Minha mãe sempre disse apenas "Deus te abençoe!". Por tanta repetição isto soa como: "Deustabençoe", "Deustambemsois", quiçá "Deunstabefões".
Meu pai, porém, costuma dizer "Deus te faça feliz!". Sempre achei bonito este ato de fala. Talvez porque as palavras escolhidas obriguem o pronunciamento correto, não permitindo destoar. No máximo soaria como "Deus te faz feliz!". Além disso, para mim, parecem realmente expressar um desejo enorme de ver a felicidade dos filhos, sobrinhos e afilhados ou netos devidamente entregues a Deus. 
Felicidade não é dom divino; é compromisso humano
Com a frase escrita, então, o ato se torna mais belo, pois sua inscrição se transforma em espelho, universalizável: inscrito não para si, mas para o Outro, pela leitura deste o ato reflete seu poder a quem o inscreveu. Quer dizer: o efeito é remetido para a coisa onde ele está inscrito, como num carro, por exemplo, ou para quem quer que lhe esteja relacionado: dono, motorista etc... Diferentemente de “Deus é fiel”, “Guiado por Deus” ou “Propriedade de Jesus”: discursos vazios que só falam do medo de quem os inscreve.
Claro que, apesar da beleza daquele discurso, ele resulta em outro problema, pois pressupõe que a felicidade seja um dom divino. Ora, isto seria um absurdo! Afinal, como poderia Deus escolher quem será feliz e quem não?! Que injustiça seria condenar alguém à infelicidade já desde o nascimento?! Por isto, em verdade vos digo: felicidade só pode ser um compromisso humano. E muitos deficientes dão prova disso.
Não sei com quem meu pai aprendeu a benzer deste modo, uma vez que minha avó paterna dizia, geralmente: "Deus te dê juízo!". Seria muito bom se ela fosse kantiana, pois, certamente estaria dizendo "Deus te dê discernimento!". A minha dúvida é se esse tal juízo, para ela, correspondia tão-somente a um aprimoramento da capacidade de julgar, ou seja, à sensatez, ou simplesmente ela queria mesmo era dizer que me achava um sem-juízo, isto é, meio maluco. Realmente não sei. 
Meu avô materno também se pronunciava com singularidade. Ele dizia: "Deus te dê boa fortuna!". Apesar de não ser ele um leitor de Maquiavel, eu acredito que o sentido estava mais para "boa sorte", do que mesmo para acúmulo de riqueza, como seria comum acreditar. Isto porque ele me parecia alguém tão sublime, que a riqueza material certamente lhe aparentava supérflua.
Só sei que, de qualquer modo, o pressuposto de todos esses discursos ou atos de fala é que, materialmente, pede-se para os descendentes aquilo que eles não tem ou o que se acredita ser melhor para eles. O legal é que minha irmã parece resumir tudo isso, dizendo: “Que Deus continue te abençoando ricamente!”... Agora, vai dizer isso para um desgraçado!
Metafisicamente, no entanto, pedir ou dar a bênção, isto é, benzer ou bem-dizer pressupõe valer-se da crença de que a palavra tem força, poder: de súplica, de concessão, de transformação. Tanto é que na sabedoria popular algumas pessoas ainda se recusam a pronunciar determinadas palavras como "câncer", substituindo-a por "CA", nome do exame usado para diagnosticar o tumor; ou mesmo por "a doença maldita" [mal dita], ou simplesmente por "aquela doença".
Outras pessoas jamais ousam pronunciar o nome "diabo", substituindo-o por vários outros como: "o capeta", "o demo", "o tinhoso", "maligno", “maldito”, "coisa-ruim" e até "diacho", como falam meus tios, como se o demônio fosse tão burro que não percebesse a mudança do nome, e assim não pudesse se apresentar ao chamado.
Entretanto, abençoar ou render graças, a rigor, querem dizer a mesma coisa: bem-dizer para ser divinamente agraciado. Mas, por que as pessoas se valem apenas do sentido metafísico se toda mística exige uma atitude? Que sentido terá a linguagem, sem uma ação que a corrobore? Como é possível, afinal, dar graças a Deus por tudo, e nada fazer, de fato, em troca, em real agradecimento? E que significa agradecer, senão reconhecer o feito? Se Deus, realmente, sabe tudo, pois tudo vê, ele vai se contentar com o fervor ou o vazio de palavras, sem que a vida do falante expresse tamanho reconhecimento?
Bem dito seja! Bem feito também!