Em Noite dos Mascarados, o pierrô de Chico Buarque pergunta à colombina: “Quem é você?...”. E ela retruca com uma proposta: “Adivinha, se gostas de mim!”. Mas será possível dizer quem se é realmente? Ou será que só cabe aos outros dizerem quem é você?
Conta-se que o filósofo Arthur Schopenhauer respondeu de modo diferente quando perguntado por um policial, que o considerou suspeito, vagando por um jardim: Quem é o senhor? Ao que teria respondido o filósofo alemão: Se você souber me dizer quem eu sou, eu lhe ficarei muito grato! Isto por que, filosoficamente, não basta adivinhar o nome próprio de uma pessoa com o sobrenome da sua família, para dizer quem ela é realmente. Haja vista que ao pronunciar o tal nome é possível e às vezes ainda necessário questionar: “...Sim, mas quem é... Fulano de Tal, no jogo do bicho?”, como diria o meu amigo Bispo.
Pior ainda é quando alguém, presumindo respostas evasivas, não apenas pergunta, mas simplesmente propõe, como se acreditasse que você já sabe quem você é: Como você se define? Dependendo do tom da conversa a pergunta pode soar como um teste sobre a sua capacidade filosófica de se auto-definir, ou até como admiração, pela curiosidade em conferir se o que você pensa de si mesmo corresponderia à noção que a pessoa tem a seu respeito.
Ora, nesses termos, só se tem duas alternativas de resposta plausíveis: ou tentar descrever o que já é supostamente conhecido pela maioria ou tentar dizer o que realmente ninguém conhece, mas que justificaria o tudo que se sabe a seu respeito. Pela primeira opção, nova pergunta surgiria: ...Ora, isto é o óbvio. Mas será que isto é o real? Será que você é realmente assim? Agora, a palavra “realmente” obriga a pensar.
O curioso é que existe um pressuposto para perguntas desse tipo. É a crença de que há um saber sobre as coisas, que é superior àquele de quem diz o que as coisas são. Em outras palavras: dizer o que é uma coisa, por mais verdadeiro que pareça, permite sempre a dúvida se é realmente aquilo que se está dizendo, mesmo que a coisa e o sabedor sejam um só: você. E, por trás dessa dúvida, existe a presunção da possibilidade de que alguém saiba mais. Daí porque até Sócrates, após beber o veneno mortal, ao descrever sua crença na vida pós-morte, complementa: “Se é realmente assim, só Deus sabe!” (Fédon).
Então, “realmente” denota a pressuposição de que o real está por trás das aparências. E, na pergunta, tal palavra convida a pensar sobre a realidade da coisa. Assim, “quem é você, realmente?” convoca a pensar sobre si mesmo para além das aparências, para além do modo como você se apresenta. E tal convocação pressupõe que só você próprio pode saber. É certamente um apelo à sua consciência para conferir se aquilo que você sabe de si mesmo corresponde àquilo que é mostrado na sua maneira de ser. Mas esta expressão – maneira de ser – é simplesmente fantástica, pois pressupõe que o ser é... de várias maneiras, como ensina Aristóteles (Met. 1003).
A rigor, a pergunta “quem é realmente você?” pode induzir a pensar que o seu ser é algo diferente daquilo que aparenta. No entanto, vale observar que não é necessário que o seu ser consista em algo diferente da sua própria aparição. Afinal, se o ser é... de várias maneiras, isto significa que qualquer maneira de ser é já e ainda o mesmo ser, como nos assegurariam Parmênides e Espinosa. Portanto, ter algo mais íntimo, oculto e diferente não é algo mais real do que a própria aparência. Ambos são, simplesmente, o mesmo ser, apesar das diferenças. Pois, a meu ver, é inconcebível se pensar em graus de realidade.
Pensar nesses termos é, paradoxalmente, confundir entre o real e a clareza ou evidência que permite distinguir uma coisa de outra. Mas isto é percepção do ser, é abordagem, depende da capacidade de apreensão, de método; é instrumental, mas não é o real. Tal confusão se deve ao fato de, inadvertidamente, se tomar por critério a força de impressão das imagens em nossa mente, força que depende e apenas indica certa capacidade de perceber. Aliás, esta é a acusação que Hume faz contra Descartes. Agora, tenta falar isso a alguém numa conversa, cuja pretensão nada tem de filosófica!
Então, como definir quem é você, sem utilizar os elementos perceptíveis da sua própria aparição? Que verdade existiria em tal definição? Como comprová-la? Qual o sentido de uma definição que não pode ser comprovada? E por que ou para que se definir com os mesmos elementos que todos já conhecem? O que isto acrescentaria ao conhecimento sobre a pessoa? Ou ainda, em outras palavras: seria impossível definir a si próprio?
Ora, definir é determinar universalmente. A definição de algo consiste na explicitação da coisa como pertencente a uma dada classe de coisas [daí o sobrenome]. É, a rigor, uma classificação. Logo, é um paradoxo universalizar um individuo, visto que o universal consiste numa classe de indivíduos. Isto implica num contra-senso definir a si próprio para alguém que já o conhece, pois, ou se insere numa classe, pela qual já é conhecido, e desse modo nada acrescenta ao conhecimento; ou diz algo que nada tem a ver com o que é conhecido, o que seria absurdo, haja vista não se poder provar.
Então, como me definir? Como me identificar dentre tantos seres humanos? Penso que de duas, uma: ou a resposta se prolongaria pela negativa, dizendo de mim o que não sou... mas saber o que não sou não determina o que sou. Ou responderia que, filosoficamente, eu sou alguém que não acredita que alguém possa se auto-definir. Por isso, humanamente, apenas vivo tentando compreender o que vivo, visando melhorar o viver. Todavia, conferir a verdade disto e suas implicações, em que me difiro dos demais e se isso é bom ou ruim, cabe a quem pensa sobre a convivência comigo.
2 comentários:
Ficou ótimo,parece que estamos nos vendo nessa narrativa,tudo que ali no texto esta descrito me faz pensar em como me definir,parabéns.
Obrigado, garota! É bom saber que gostou!
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