sábado, 5 de maio de 2012

Nova Lição

Há alguns dias eu estava passeando de bicicleta e fui calibrar-lhe os pneus na borracharia de um posto de combustível. Com um "bom dia!" habitual cumprimentei o borracheiro e os clientes. Perguntei, então, se eu poderia usar aquele equipamento, mas o borracheiro não me respondeu. Apenas pegou-o para calibrar os pneus de um carro de uma motorista. Ao terminar, ele me entregou a mangueira do calibrador e foi terminar outro serviço em outro carro.
Enquanto eu fazia o meu serviço eu o ouvia dizendo para outros dois clientes: "há duas coisas que as pessoas falam e que não servem pra nada: 'deus lhe pague!' e 'obrigado!' O que é isso?". Vi no questionamento oportunidade para uma boa reflexão filosófica. Mas, pela situação, presumi que o falante estava a reclamar da motorista, que nem saiu do carro e talvez só lhe tenha dito "obrigada" ou "deus lhe pague". Ele ainda descartou o "deus lhe pague", alegando que só receberia em outra vida na qual, aparentemente, ele não acreditava; então, em que isso lhe agraciaria?!
O cliente a quem ele ora atendia apenas escutava. Mas alguém que ora prestava serviço ao posto, retrucou: "É uma questão de educação dizer 'obrigado'. Mas se você não tem educação... o que se pode fazer?!". 
Eu já pensava em lhe perguntar se ele quereria saber realmente o que significa "obrigado". Mas quando ele respondeu "Educação?! Educação não paga serviço, não"; eu logo percebi que ele nem poderia querer saber, pois, pelo seu discurso, a sua sabedoria se limitava a coisas concretas. Ora, se nem por medo, próprio do senso comum, ele apreendera a ideia de um pagamento divino, como apreenderia a ideia de um "obrigado" ou de "educação"?
Daí eu o compreendi como exemplar de um aspecto mítico da racionalidade, em cuja linguagem as palavras só tem sentido se elas não apenas se referem, mas denotam, de fato, algo concreto como, por exemplo, "dinheiro". Por isso, para ele, "educação" não faz o menor sentido. Tanto é que ele acrescentou, dirigindo-se ao dono do posto: "Então, não paga a ele, não; diz apenas 'obrigado' e pronto".
Eu já havia terminado o meu serviço e estava, então, montado na bicicleta pensando sobre como eu poderia lhe dizer que seu raciocínio correspondia à mentalidade primitiva, pela qual se promoviam sacrifícios de vida animal ou humana, para render graças aos deuses, em agradecimento por alguma graça alcançada, como uma boa colheita ou como a vitória numa guerra, por exemplo. 
Mas, valeria a pena dizer-lhe que "obrigado(a)" significa agradecido(a)? E que estar agradecido significa dar graça ou agraciar? E que dar graça ou agraciar é, de fato, fazer algo em reconhecimento ao serviço prestado, ou seja, à graça recebida? Afinal, nesses termos, eu tinha que concordar com o raciocínio dele em esperar não apenas um "obrigado", mas, sim, um dinheiro ou algo em troca do seu serviço. E, daí, como lhe explicar que há centenas de anos a racionalidade mudou, juntamente com as relações sociais cuja modernidade apenas endeusou a concretude do dinheiro?
Sob a imediatidade da questão e do meu passeio, logo decidi apenas sorrir-lhes e silenciar-me, saindo sem lhe agradecer pela lição nem me desculpar pelo uso do ar comprimido, evitando assim que ele me cobrasse duplamente.

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